
Cartórios da Bahia faturam R$ 3 bilhões ao ano enquanto ação sobre sua privatização irregular tramita há 13 anos no STF. Julgamento com 6 votos pela inconstitucionalidade expõe morosidade, custos elevados aos usuários e privilégios sem concurso público.
O Supremo Tribunal Federal (STF) acumula há 13 anos um processo sobre a privatização irregular dos cartórios da Bahia, tema que mobiliza entidades de classe, usuários e o próprio Ministério Público. A indefinição permite que tabeliães oriundos de concursos simplificados de 2004, sem provas e títulos, atuem em regime privado desde 2011, recebendo vencimentos que podem chegar a R$ 70 mil por mês.
Enquanto a decisão final não sai, os cartórios baianos faturam cerca de R$ 3 bilhões anuais, mantendo serviços considerados precários pelos usuários, que reclamam de custos elevados e baixa eficiência.
O processo foi iniciado em 2012 pelo Ministério Público, que questiona a lei estadual responsável pela migração de servidores para a titularidade privada sem concurso público. Apesar de decisões anteriores do STF e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em situações semelhantes em outros estados, a ação baiana sofreu sucessivos adiamentos.
O ex-relator ministro Dias Toffoli chegou a votar pela inconstitucionalidade da lei, mas defendeu a permanência dos atuais cartorários em nome da chamada “segurança jurídica”. Sua postura oscilou entre plenário físico e virtual, atrasando a tramitação. Em agosto de 2025, o ministro Luiz Fux solicitou que o julgamento deixasse o plenário virtual e fosse levado ao físico, novo fator de protelação.
Votos já consolidados e cenário do julgamento
Até o momento, seis ministros já votaram pela inconstitucionalidade da lei baiana, o que indica tendência consolidada contra a norma. Restam os votos de Luiz Fux, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes. Ministros Flávio Dino e André Mendonça não participam, pois sucederam colegas que já haviam votado.
O julgamento, que deveria ter sido encerrado em 2023, acumula cinco pedidos de mudança de plenário. A demora já ultrapassa a média nacional de oito anos para ações diretas de inconstitucionalidade, segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Posições das entidades e notas divergentes
A Associação Baiana dos Notários e Registradores (ABNR) defende a legalidade da lei de 2011, citando pareceres de juristas como Sepúlveda Pertence e Celso Antônio Bandeira de Melo. A entidade afirma que parte dos cartorários ingressou regularmente por concurso.
Já o Colégio Notarial do Brasil – Seção Bahia (CNB-BA) sustenta que a situação gera constrangimento à classe notarial, pois permite que profissionais não aprovados em concurso de provas e títulos ocupem cartórios extrajudiciais. A entidade classifica o caso como uma afronta ao princípio republicano do concurso público.
Estrutura do regime e benefícios financeiros
Em 2004, os cartorários baianos participaram de um concurso simplificado que garantia apenas salários fixos. A lei de 2011 alterou o regime e concedeu a esses mesmos servidores a possibilidade de migrar para a administração privada, em desacordo com a Constituição, que exige concurso de provas e títulos.
Com a mudança, os vencimentos mensais saltaram, e hoje alguns cartórios geram receitas individuais superiores a R$ 1 milhão ao ano, transferindo o custo para a população. Esse modelo tem sido criticado por usuários, que enfrentam filas, cobranças excessivas e serviços abaixo do padrão esperado.
Transferência de renda dos cidadãos para cartórios
O caso dos cartórios da Bahia expõe um dos paradoxos mais persistentes do sistema judicial brasileiro: a morosidade do Supremo Tribunal Federal (STF) em ações de inconstitucionalidade que afetam diretamente milhões de pessoas. O processo arrasta-se há mais de uma década, sustentado por sucessivas trocas de plenário e oscilações de ministros, o que perpetua privilégios ilegais sob a justificativa da “segurança jurídica”.
Enquanto o STF posterga sua decisão, os cartórios consolidam um modelo de enriquecimento privado sem concurso público, em frontal contradição com a Constituição. Essa protelação fragiliza a credibilidade institucional, incentiva disputas corporativas e cristaliza um sistema oneroso e desigual, que transfere recursos da coletividade para poucos beneficiados.
O impasse como mecanismo de transferência de renda
O atraso de 13 anos no julgamento não é um dado neutro. Ele atua como um sistema ativo de transferência regressiva de renda, em que a população financia, mês a mês, uma estrutura majoritariamente considerada inconstitucional. Esse fluxo de recursos se dá por múltiplos canais:Preços e emolumentos acima do necessário: sem concorrência efetiva e sob a proteção de titularidades obtidas sem concurso de provas e títulos, os cartórios internalizam rendas monopolistas. Em um ambiente de custos fixos relevantes e alta demanda compulsória (nascimento, óbito, imóveis, firmas, protestos), a margem vira renda econômica, não ganho de eficiência. O resultado é repasse de custos ao usuário, que não pode optar por outro prestador.
Regressividade explícita: taxas cartorárias, em regra, não se calibram por renda. Uma certidão custa o mesmo para um trabalhador informal e para uma grande empresa, o que torna o encargo proporcionalmente mais pesado para os mais pobres. A fila e o tempo perdido são custos ocultos (transporte, dia não trabalhado), que se somam ao valor do serviço.
“Segurança jurídica” como escudo de renda: a invocação de estabilidade para manter titulares sem concurso congela um status de exceção e socializa o custo (usuários pagam) enquanto privatiza o benefício (receitas que, segundo o caso, chegam a R$ 70 mil/mês por titular). Trata-se de captura institucional: uma regra excepcional converte-se, na prática, em direito adquirido de renda.
Efeito-anel na economia: R$ 3 bilhões/ano drenados do gasto das famílias e empresas deprimem consumo e investimento locais. Em serviços obrigatórios, não há elasticidade: as pessoas pagam e cortam outras despesas (saúde, educação, manutenção da casa). O custo de oportunidade é alto e invisível nas estatísticas diárias.
Baixa pressão por produtividade: titularidades blindadas e a ausência de competição reduzem incentivos à digitalização real, ao atendimento eficiente e à transparência tarifária. Em setores de obrigação legal, eficiência só cresce quando há governança rígida, metas públicas e accountability — ingredientes fragilizados pelo prolongamento do litígio.
Incerteza jurídica que remunera a espera: cada adiamento e troca de plenário funciona como um “dividendo da morosidade” para quem se beneficia do arranjo atual. A renda se acumula mês a mês, enquanto a coletividade financia o tempo do processo, sem contrapartida.
O que estaria em jogo com a conclusão do julgamento
Concluir o julgamento e executar seus efeitos (com transição responsável) reordena incentivos: reabre a porta do concurso público, reduz a renda monopolista, melhora a qualidade via metas e descompressão tarifária (inclusive por padronização e digitalização efetiva). Sem isso, a economia política do atraso permanece: renda privada garantida, custo social difuso.
Parâmetros de uma transição que proteja o usuário — e não as rendasExecução imediata com cronograma: concurso de provas e títulos e nomeação célere dos aprovados, com fase de transição para continuidade do serviço.
Tarifas e transparência: auditoria independente dos custos operacionais, publicidade ativa de filas, prazos e valores, e métricas públicas de desempenho.
Digitalização de verdade: interoperabilidade nacional, eliminação de redundâncias (ex.: certidões repetidas), pagamentos eletrônicos e SLA de entrega.
Defesa do usuário: ouvidorias com poder sancionatório, mecanismo de reembolso por atraso ou cobrança indevida, e gratuidade/isenção para faixas de baixa renda em atos essenciais (nascimento, óbito, retificações básicas).
Governança anticaptura: rodízio periódico de corregedores, relatórios semestrais ao CNJ, e sanções efetivas para quem descumprir padrões de desempenho e ética.
Em síntese: manter o arranjo provisório é subsidiar, por inércia, uma renda privada de natureza monopolista, paga por todos — sobretudo pelos mais pobres. Concluir o julgamento, impor concurso e metas e cortar privilégios não é apenas uma exigência constitucional; é política pública de redução de custos, aumento de eficiência e justiça social.
*Com informações de Eduardo Militão, do UOL.
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